Empresas doam R$ 6,45 bi na pandemia, mas ‘seguem’ o caminho do dinheiro
Maiores doadoras criam processos para identificar alvos e controlar impacto de suas ações contra a crise do coronavírus
Por Karen Garcia
Empresas, institutos, fundações e pessoas físicas doaram ao menos R$ 6,45 bilhões este ano para ajudar o país a enfrentar consequências sociais e econômicas da pandemia, segundo levantamento do monitor criado pela Associação Brasileira de Captação de Recursos (ABCR).
A mobilização é inédita em um país com pouca tradição filantrópica e ainda incipiente engajamento das empresas em ações de caráter comunitário. No entanto, há algo a mais de novo.
Além de destinar cifras significativas para ações de combate ao coronavírus e seus efeitos, grandes companhias assumiram também a responsabilidade pela aplicação dos recursos.
Foi o que decidiram fazer as quatro empresas responsáveis pelas maiores doações desde o início da pandemia. Itaú, JBS, Coca-Cola e Magazine Luiza — que juntas responderam por 25% do total de doações contabilizado pela ABCR — criaram estruturas para acompanhar o caminho do dinheiro até a ponta.
Esse envolvimento é visto por especialistas em gestão corporativa como uma forma de responder à crescente cobrança de consumidores e investidores por transparência e compromisso das empresas com investimentos sociais que tenham resultados efetivos, para além do marketing.
A pandemia desencadeou uma corrida de reputação entre as empresas, e isso hoje em dia envolve mais que fazer a doação.
“Não é apenas por altruísmo: as ações se valorizam, o relacionamento com as comunidades melhora, os colaboradores se engajam” – Márcia Woods presidente da ABCR
As empresas precisam planejar as ações, escolher os alvos certos e garantir o bom uso dos recursos sem esquecer de definir formas de medir os impactos de suas iniciativas.
Márcia Woods, presidente da ABCR, observa que mesmo as empresas sem histórico de responsabilidade social aproveitaram a oportunidade para reforçar sua imagem corporativa:
— Elas têm marca e reputação a zelar. Não é apenas por altruísmo: as ações se valorizam, o relacionamento com as comunidades melhora, os colaboradores se engajam. Mas o maior aprendizado é que as empresas se deram conta de que todos são responsáveis pelos desafios do país.
Com a reabertura gradual da economia e o fim da sensação de emergência, contudo, a fonte está secando. Na semana passada, o monitor da ABCR estagnou pela primeira vez desde o início da crise, na casa dos R$ 6,45 bilhões.
— Agora vamos ver o quanto o brasileiro é ou não solidário. O trabalho das organizações continua, as pessoas perderam emprego, continuam em isolamento, mas o mote da pandemia perdeu fôlego — disse Márcia. — A gente esperava como um dos legados da pandemia o maior engajamento com ações sociais, mas não é isso que estamos vendo.
Comitê técnico para decidir
Claudia Politanski, vice-presidente do Itaú Unibanco, conta que o banco percebeu logo que precisaria de apoio técnico para direcionar o montante de R$ 1,2 bilhão que estava disposto a doar para ações que pudessem fazer diferença no combate ao coronavírus, como a criação e reforço de estruturas hospitalares e laboratoriais.
Para isso, criou um comitê executivo com especialistas para decidir a alocação dos recursos.
— No início da pandemia, em março ainda, vimos o tamanho da gravidade do quadro e entendemos que precisávamos fazer alguma coisa. Foi fácil na parte de assistência social, mas muito difícil na questão médica. Rapidamente percebemos que não tínhamos condições técnicas para tomar as decisões necessárias. Por isso criamos o comitê, que, dada a extensão do problema e sua complexidade, decidiu que era necessário fazer uma doação robusta — relembra Claudia.
A partir das decisões desse grupo técnico, o banco assumiu, por exemplo, todo o processo de compra e logística de distribuição de milhões de equipamentos de proteção individual, testagem e infraestrutura médica, como os necessários para o processamento de testes PCR e de sorologia em parceria com a Fiocruz.
A gigante de carnes JBS também montou um comitê de especialistas para definir como seriam distribuídos R$ 400 milhões.
Segundo a empresa, o objetivo foi focar em “demandas estruturantes”, como construção e reforma de hospitais, compra de equipamentos médicos e incentivos a pesquisas científicas.
Do total, R$ 330 milhões foram destinados para a ampliação de leitos e a compra de testes, medicamentos e equipamentos médicos para hospitais e ainda para a doação de insumos de higiene e alimentos.
O restante foi repassado para entidades de pesquisa e tecnologia no país com foco em saúde e o apoio a comunidades carentes.
Controle sobre o impacto
Para garantir o controle sobre o impacto de suas doações, a Coca-Cola usou como primeiro passo tático a escuta, diz Andréa Mota, diretora de Sustentabilidade da multinacional no brasil. A empresa destinou R$ 45 milhões para ações de assistência social, geração de renda e saúde.
— Conversamos com governo, comunidades e líderes da sociedade civil. Por mais volumoso que seja o recurso, ele não é infinito. Ainda que tenhamos um histórico de investimento social, não sabemos tudo. Ouvindo bastante, percebemos que precisávamos atuar em três frentes: sensibilização das medidas de prevenção, investimento em saúde e apoio aos vulneráveis — conta Andréa.
A partir deste diagnóstico, a Coca-Cola firmou parcerias com organizações sociais para distribuir 150 mil máscaras em várias cidades do país, abasteceu 85 hospitais com 2,3 milhões de garrafas de água mineral e doou 50 toneladas de álcool 70% aos estados do Amazonas e de Roraima.
Na vertente social, o contexto da pandemia exigiu velocidade e versatilidade na aplicação das verbas.
No Amazonas, realizou a entrega de cestas básicas. No Paraná, apoiou a logística de transporte de doações reunidas pela Associação Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat).
A Coca-Cola ajudou a viabilizar a distribuição de cartões de vale-alimentação de R$ 200 para mais de sete mil trabalhadores da categoria, que tiveram a atividade informal de coleta e reciclagem prejudicada.
— É meio natural para a gente fazer transferência de recurso para diversas organizações. Chamamos parceiros para agilizar o processo. Estávamos olhando a eficiência e agilidade para como o dinheiro chegaria dentro dos nossos parâmetros de compliance (conformidade) — diz Daniela Redondo, diretora do Instituto Coca-Cola, braço de responsabilidade social da companhia no país.
Ela continua:
— As comunidades não são padronizadas no Brasil, portanto o recurso deve ser flexível.
Para o presidente da Ancat, Roberto Rocha, a ajuda foi muito bem-vinda já que boa parte dos catadores não conseguiu se cadastrar para receber o auxílio emergencial do governo:
— O cartão foi essencial para que o catador pudesse ir ao supermercado, açougue ou drogaria, dando autonomia de escolha para comprar o que eles precisavam de fato.
Combate à violência doméstica
Além dos R$ 50 milhões doados pelos controladores do Magazine Luiza para ações de combate à pandemia, a empresa ampliou em R$ 2,5 milhões os recursos de um fundo criado para o combate à violência contra mulher.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, durante a quarentena, o número de casos de feminicídio cresceu 22% no país.
“As comunidades não são padronizadas no Brasil, portanto o recurso deve ser flexível” Daniela Redondo diretora do Instituto Coca-Cola
O fundo financia iniciativas voltadas para a geração de emprego e renda para mulheres vulneráveis, uma forma de ajudá-las a conquistar a independência financeira — um fator determinante para o rompimento dos vínculos com agressores.
Em recente entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, a presidente do conselho do Magalu, Luiza Trajano, definiu como crescente o interesse das empresas em complementar ações do poder público com doações, desde que mantenham o controle de como serão aplicados os recursos.
Investidores de olho no social
Esse zelo pelo resultado nas ações sociais das empresas ganha espaço porque as empresas entenderam que precisam ter uma boa história para contar sobre como geram impactos positivos na sociedade. É um requisito cada vez mais exigido de empresas interessadas em fortalecer a imagem corporativa.
É cada vez maior a pressão para que empresas demonstrem compromissos com os chamados princípios ESG (ambiental, social e de governança, na sigla em inglês). Gestores de vários fundos de investimentos no mundo estão de olho nesses indicadores para tomarem decisões de negócios.
As ações em saúde absorveram 75% do total das doações contabilizadas pela ABCR no Brasil. Já a assistência social ficou com 19% Educação e geração de renda somaram 6% do capital filantrópico arrecadado nesta pandemia.
Para Márcia Woods, da ABCR, essa mobilização representou uma resposta sofisticada à crise por parte das empresas, que também tiveram suas atividades prejudicadas. Além disso, as novas tecnologias permitiram maior transparência, diz:
— Além do volume doado pelas empresas, houve um chamamento para a contribuição da população. Quando a filantropia vai para o digital, o dinheiro é contabilizado, rastreado e a prestação de contas é mais transparente.
‘Caminho sem volta’
Paula Fabiani, diretora-presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), diz que a cobrança por ações de responsabilidade social corporativa é crescente e não vai parar. E a ação de uma tende a estimular outras.
— O movimento das empresas é um caminho sem volta, pois uma vez que se engajam há uma cobrança constante dos consumidores e funcionários — diz.
No primeiro semestre deste ano, a Sitawi Finanças do Bem assumiu a gestão de 12 fundos filantrópicos alimentados por empresários com foco no combate à Covid-19, diz o fundador e diretor executivo Leonardo Letelier:
— As pessoas querem doar para algo com uma estrutura clara, que tenha parâmetros de compliance. A gente cuida das atribuições financeiras, tributárias, de compras e prestação de contas, de modo que o instituidor possa focar em captação de mais capital para alcançar os resultados pretendidos.
“O movimento das empresas é um caminho sem volta, pois uma vez que se engajam há uma cobrança constante dos consumidores e funcionários ” Paula Fabiani diretora-presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS)
As perspectivas para o próximo ano, no entanto, não apontam para o mesmo patamar de volume doado em 2020, ressalta Letelier:
— O brasileiro se mexe por emergência. Não acredito que chegaremos perto de R$ 6 bilhões no ano que vem. Precisamos de uma visão de longo prazo, mais flexibilidade na aplicação do dinheiro doado. E achar um formato com o qual as empresas possam também engajar os seus funcionários, pois muitos têm vontade de doar, mas não têm conhecimento.
Claudia Politanski, do Itaú, avalia que a postura do banco na pandemia aumentou o nível de satisfação dos funcionários. A executiva, que deixa o banco no final do ano, mostrou-se surpresa com a gratificação que o envolvimento no projeto trouxe para ela mesma:
— Ter tido a chance de contribuir com algo que foi tão relevante para o nosso país, se resume em gratidão. R$ 1 bilhão não é nada no orçamento público da saúde, mas, com essa experiência podemos ajudar no desenvolvimento de boas políticas públicas. O maior legado no final das contas é salvar vidas
Fonte: oglobo.globo.com
Acessado em: 28 Outubro 2020, 16:11:15.