‘O mercado não tem mais parâmetro para o dólar’, diz executiva do banco Travelex
por João Sorima Neto e Renato Andrade
No comando do braço local de uma das maiores instituições globais especializadas em câmbio, Ana Tena alerta que volatilidade tem tudo para continuar por um bom tempo
A volatilidade da cotação do dólar frente ao real tem deixado muita gente perplexa. Ana Tena, que preside o braço local da maior especialista em câmbio do mundo, é uma delas. As incertezas em relação à política fiscal do governo e a um plano de recuperação da economia criaram um mercado que não tem mais parâmetros, não tem mais correlação entre câmbio, bolsa e juros, explica a presidente do grupo Travelex Confidence no Brasil, em entrevista ao GLOBO.
Para a executiva, o atual patamar da moeda americana — em torno de R$ 5,70 — prejudica a economia e, especialmente, a indústria, já que até uma garrafa de água tem polímeros importados. A seguir, os principais trechos da entrevista:
O que justifica essa escalada do dólar?
A gente perdeu todas as métricas, os parâmetros. Estamos num novo mundo onde a volatilidade e as incertezas vieram para ficar. A pandemia, a digitalização, as incertezas dos mercados futuros, política fiscal local e internacional, eleições. Tudo isso, junto, criou um mercado onde a gente não tem mais parâmetros.
Antes a gente tinha correlação com Bolsa de Valores, taxa de juros e deixou de ter isso para viver basicamente em termos especulativos de expectativas. Quando vemos as Bolsas caindo 4% em um dia por causa de uma nova crise da pandemia de Covid-19, existe um movimento de manada que faz essas variações fortes de subida e descida de câmbio. Ainda mais num país emergente, como o Brasil, tudo isso cria um movimento especulativo.
A dívida brasileira deve passar de 100% do PIB neste ano, segundo previsões do Fundo Monetário Internacional. O combate à Covid elevou os gastos públicos, ampliando a lacuna entre despesas – que já eram altas – e arrecadação. Investidores têm cobrado mais caro para comprar títulos da dívida brasileira, especialmente os de prazo mais longo.
Divergências entre Congresso e Ministério da Economia quanto aos rumos da retomada no país vêm crescendo. Nesta semana, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) criticou a obstrução da base do governo para votar pautas importantes na Casa. Há risco de a votação do Orçamento de 2021 ficar só para depois de março. Há ainda divergências no Executivo, com uma ala defendendo mais gastos para reativar a economia. O ministro Paulo Guedes se opõe ao aumento das despesas.
Sem articulação no Congresso, o governo não consegue avançar com as reformas, como a tributária e a administrativa. O Brasil é o 7º, entre 70 países, que mais gasta com o funcionalismo. A reforma administrativa, cuja proposta foi encaminhada ao Legislativo em setembro, pretende corrigir distorções para reduzir os gastos com salários dos servidores.
A agenda de privatizações do governo está parada. O projeto de lei que abre caminho para a venda do controle do Correios chegou a ser finalizado neste mês, mas ainda não chegou ao Congresso, onde há forte resistência à operação. Nesta semana, a Unctad, agência ligada à ONU, disse que os investimentos estrangeiros diretos caíram à metade no país, no primeiro semestre, por conta da paralisação do programa de privatizações.
Novos casos de Covid-19 na Europa e nos EUA levaram os países a restringir a circulação das pessoas. A França já havia adotado o toque de recolher, mas anunciou novas decretaram novas medidas de isolamento, como fechamento de bares e restaurantes, também adotado pela Alemanha. Essas medidas podem atrapalhar a retomada da economia global.
Como retomar esses parâmetros ou reduzir a adrenalina?
Tirando a pandemia, fator que assusta a todos, precisamos de alguns cenários. Não temos plano de recuperação da economia. Não vou falar do óbvio, que é o planejamento fiscal, e do plano assistencial, que está em vigor. Mas como a gente sai disso? Estamos vivendo de expectativas, mas hoje não se enxerga um plano econômico de recuperação. Como os pequenos empresários que fecharam as portas vão retomar? Onde o governo vai investir?
Temos excesso de liquidez no mercado, mas não temos projeto para saber em que segmento investir. Com juros baixos, há uma corrida por IPOs, novas empresas oferecendo suas ações no mercado, em busca de mais rentabilidade. Mas precisa ter cuidado. Temos empresas com múltiplos exagerados sendo lançadas. O brasileiro não sabe analisar setores, empresas. Estava acostumado com a rentabilidade alta do juro. Tem muita gente assustada com as quedas da Bolsa, o que traz mais volatilidade.
Quais sinais o governo precisa dar para o investidor conseguir ter mais tranquilidade?
Precisa de um acordo no governo, se unir ao Congreso, com mais foco, e aprovação mais rápida das pautas. E de um plano de recuperação. As privatizações não saíram. Faltam sinais de que os projetos anteriores que foram pautados vão começar a ter andamento.
Como explicar esse cenário aos clientes?
A gente tem trabalhado com proximidade maior dos clientes, no contato pessoal, em termos de planejamento financeiro e proteção cambial. Essa instabilidade é nova e as pessoas não estão acostumadas com derivativos (instrumentos financeiros). O objetivo é que os clientes estejam protegidos contra essa volatilidade. Para pessoa física, temos lançado produtos como câmbio programado para tentar colocar um pouco de limite na aversão ao risco.
Tenho recebido investidores estrangeiros interessados na compra de imóveis em praias, resorts no Brasil. O Brasil ficou barato, e quem está comprando é basicamente europeu. Para a indústria, o importante é segurar margens. Não queira especular com dólar. Segura tua margem e trava numa determinada posição de câmbio, que é necessária para ter sustentabilidade na sua empresa.
O empresário brasileiro já aprendeu que dólar não é uma coisa para ‘brincar’?
Está começando a aprender, mas está apredendo na dor. Temos muitos exportadores que travaram o câmbio e agora dizem que perderam dinheiro. Não, eles não perderam dinheiro, eles asseguraram sua margem de ganho.
Tivemos uma alta do dólar, mas ele poderia ter caído. As pessoas ainda conhecem pouco os derivativos aqui no Brasil. O mercado de câmbio ainda é imaturo. Tem muito espaço para seguro cambial, hedge, travas. Por causa das altas taxas de juros, era impossível fazer isso. A queda da Selic traz esse aprendizado para a aérea produtiva.
Por que o real se desvalorizou mais do que as moedas de outros países emergentes?
Minha percepção é que temos uma concentração bastante grande do mercado de câmbio, que ainda é pequeno no Brasil. Tesourarias de grandes bancos multinacionais, que faziam receita no mercado local com juros altos, movimentam muito mais rápido o volume de recursos. Pelo menos 90% do movimento está na mão de três ou quatro bancos estrageiros. São movimentos de trading, mas são especulativos.
Como você avalia a atuação do Banco Central?
Difícil. Eu não queria estar na posição do Roberto (Roberto Campos Neto, presidente do BC). É fácil criticar, mas temos vários fatores imponderáveis. Temos uma enorme rolagem de dívida, que está sendo aumentada. Com taxa Selic baixa, o pagamento da dívida de curto prazo fica mais barato para o governo.
E tem um lado positivo, que é estimular a saída dos recursos de aplicações financeiras para o setor produtivo. Mas ao mesmo tempo tem uma fuga de investidores do Brasil. Os fundos conseguiam equilibrar a volatilidade das Bolsas com a taxa Selic. Hoje, com 2% de juro, criou-se uma volatilidade grande na carteira de fundos. E a taxa de juros real é negativa. Então é difícil ter que equlibrar as contas públicas e o crescimento do país.
O dólar pode chegar a R$ 6?
Não fazemos mais estimativas. As variáveis internas e externas nos impedem de fazer qualquer previsão. Mas a gente acha que o dólar está num patamar alto e quebra a indústria. Tivemos uma época que achamos que não precisávamos produzir. Se é caro fabricar, eu importo. Quebraram as empresas que produziam com custo alto.
Mas agora, quando uma garrafinha de água precisa de um polímero importado e o dólar subiu 40%, temos um problema. Temos um gerador inflacionário. As indústrias automotiva, eletroeletrônica dependem de componentes importados. E o câmbio nesse nível vai trazer muito problema. Não é sustentável.
Fonte: oglobo.globo.com
Acessado em: 03 de Novembro de 2020, 10:01:17.